A MORTE EXIGE SERENIDADE

 

O combate ao crime idem. A morte em combate ibidem. Mas não foi isso que assisti há pouco nas redes sociais e na grande imprensa. Sem essa de pensamento binário. Com inteligência, concluímos que não é o fato de se achar ruim a comemoração de um ser humano abatido, mesmo em combate, que se é a favor de bandido. Vivemos em um Estado de direito, ou não? Por mais evidente que fossem seus assassinatos, e tudo nos leva a crer que o tal Lázaro fosse realmente um criminoso psicopata, em um Estado democrático pleno, sua polícia não pode agir apaixonadamente por vingança e sentimento de justiça com as própria mãos. Me fez lembrar do governador descendo do helicóptero aos pulos pelo abatimento de um sequestrador por um “snaiper”. Devemos lamentar que não tenhamos conseguido prender um suspeito de crimes graves contra a sociedade e julgá-lo sob as forças da lei.

E quem está comemorando? No mais das vezes, o povo pobre, preto ou pardo, morador da periferia, alvo prioritário de programas de TV popularescos e políticos demagógicos que exploram o sofrimento, a violência e a angústia de pessoas menos avisadas. Assim a  roda da expropriação  e da exploração, de bens e valores, gira. Você invade o meu lugar com a justificativa de estar à procura de um bandido. Não apresenta mandado de busca e apreensão. Chega de repente, mete o pé na porta, entra sem avisar. Uma bala se perde, atinge uma grávida ou um adolescente. Mas você pensa, “não foi comigo”. Mesmo que tenha sido em seu lugar.

Falta muito ainda para termos a consciência da violência que nos sufoca e mata. Da grande violência que nos cerca. Os psicopatas, especialmente, se pobres, são novelescos e servem de “conteúdo” para o consumo coletivo. Os psicopatas que nos governam se apresentam de outras formas, mas elegantes, cujos nobres endereços, no mais das vezes, não são alvo de ação policial. Nesse caso, não se atira primeiro ou seus corpos são expostos ao delírio popular. Muita calma nessa hora, quero todos presos e julgados perante a lei.

Nosso povo é vítima de violência dupla. Quando vê transgredido seus direitos coletivos pelos agentes do Estado e quando vive e testemunha a violência do crime e da miséria que o cerca. 

Enquanto não tivermos um Estado cuja Justiça seja instrumento de reparações, continuaremos comemorando a justiça feita com as próprias mãos. Quero viver numa nação pródiga em leis, cuja sociedade seja protegida e que seu povo receba educação de qualidade, suficiente para que desenvolva uma massa crítica à sua fragilidade. Que consiga se preservar a se satisfazer com a violência que atinge o outro, mesmo que fora de seu quadrado, mas dentro de seu círculo de vida.

 

28 de junho de 2021

 

Marcio Aurelio Soares


 

  








O POVO É O ANFITRIÃO

 

                Dia 19 de junho de 2021 ficará marcado por termos atingido 500 mil mortos pelo coronavírus. Luto, sofrimento e angústia, foram os sentimentos vividos por mais da metade da nossa população. Os que ficaram órfãos, viúvas, sem o amigo, a mãe, o vizinho, ou aquela pessoa que admirava, o professor da escola, o pastor ou o padre, o líder comunitário; enfim, o sentimento de perda tem sido grande e doloroso. O de impotência também. Não à toa, 93% querem ser vacinados imediatamente. Foi o que mostrou uma pesquisa realizada pela companhia global Ipsos, denominada “Covid-19 Vaccination Intent”, publicada recentemente, que revelou a intenção da esmagadora maioria da população brasileira em se se vacinar contra a covid-19 o quanto antes.

                Assim, o brasileiro está descobrindo que não basta ter esperança e esperar, que temos que construir a nossa realidade, fazendo do luto um verbo conjugado no presente do indicativo. Ainda que o verbo descobrir esteja sendo conjugado no gerúndio, o inverno chegou impondo-nos a necessidade de nos aquecer com a energia transformadora da indignação por uma terceira de onda que grande parte dos especialistas afirmam que deve acelerar o número de óbitos. O Médico epidemiologista do Hospital Universitário da USP, Marcio Sommer Bittencourt é enfático ao declarar que não temos “perspectiva positiva” e que, segundo as projeções do Instituto de Métricas em Saúde da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, o Brasil poderá contabilizar quase 730 mil mortes por covid-19 até o final de setembro. Isso não é trivial. Não são jogos de palavras, disputas políticas mesquinhas.

                É o mesmo que chover no molhado dizer em que time o Presidente da República Jair Bolsonaro está jogando; não é o do brasileiro. Como não bastasse as bravatas ditas diariamente para embaçar uma realidade tão cruel, faz gol contra à ciência e os profissionais de saúde. Se nada fizesse ou quieto ficasse, seria menos pior. Sem liderança ou coordenação nacional, cabe a nós, profissionais, líderes comunitários, militantes de movimentos sociais ou de partidos políticos, chamar a população à ação.

                Na década de 1980, os estudantes, os trabalhadores, dos pobres à classe média; organizações da sociedade civil e sindicatos, todos nós fomos para as ruas. Reconquistamos a democracia formal, voltamos a eleger prefeitos, governadores e o presidente do País; tivemos de volta a liberdade de expressão e de imprensa. Naquele momento minha geração estava na rua, lutando por cada tijolo, por cada metro de chão.

                Mas não fizemos o dever de casa como deveríamos ter feito. Passamos três décadas e nos dispersamos; conquistamos o espaço e não o mantivemos. Não nos organizamos. Nos embrenhamos em uma sociedade de consumo e nossa felicidade passou a ser ditada pela moda. Deu no que deu. O que está dando. Num barco à deriva.

                Gerações se passaram, da felicidade de consumo anestesiante, chegamos ao luto de lutar; e, mais do que nunca, a poesia revolucionária de Geraldo Vandré se faz necessária, “vem vamos embora, que esperar não é saber, quem sabe faz a hora não espera acontecer”. Sejamos os anfitriões de nossas vidas. “Um novo tempo começou, apesar dos perigos”. O povo na rua é a única certeza de que podemos mudar e construir uma nova história, com presente e com futuro.

21 de junho de 2021 - Marcio Aurelio Soares



 

MOTOS E MORTOS

 

                Imaginem ir ao médico queixando-se de muito cansaço, dor no corpo e febre e sair do consultório com um tapinha nas costas e “não se preocupe, isso não é nada”. No mínimo, qualquer um ficaria inseguro. Outras pessoas passam a sentir a mesma coisa que você, umas pioram muito, outras tantas vão precisar de tratamento intensivo, os telejornais passam a informar o número de óbitos, que se mantém em mais de 2 mil vidas por dia, e seu médico continua a dizer, “não se preocupe. Isso é assim mesmo”. É evidente, que qualquer um de bom senso, trocaria de médico. Mas, se mesmo assim, uma parcela de pessoas, uma minoria, mesmo diante de pessoas enlutadas, passasse a se manifestar favoravelmente ao descaso e ao tapinha nas costas? Seria inimaginável! Mas é isso, exatamente isso, que está acontecendo.

                Tem gente que está indo para rua defender o descaso, a negligência e, pior, o deboche de um quadro, que se tornou ainda mais dramático pela omissão do presidente da República. Não se trata de ter opinião política divergente de A ou B. Estamos nos referindo a maior crise sanitária vivida pelo País, que, até o momento, nos tirou quase 500 mil pessoas, que eram pais, mães, filhos, sobrinhas, tios, amigos ou que de, alguma forma, era importante para alguém e cuja ausência nos entristece profundamente.

                Recebi uma mensagem pelo whatsapp, cujo conteúdo celebrava o “recorde mundial de passeata de motos...1.324.523 motos” no último fim de semana. É isso mesmo. Dizia a postagem que mais de um milhão de motos participaram do tal evento, recorde registrado no Guinness Book; e, ao final, se intitulava como a turma do bem, da luz; sendo essa a diferença entre a direita e a esquerda. Independente de como se intitulem, imaginar que tenham estado na manifestação motorizada mais de um milhão de motos, chega a ser ingênuo e infantil. Não. É pior. É desonestidade intelectual. Ou é burrice. Segundo o Denatran (Departamento Nacional de Trânsito) a frota total de motocicletas em São Paulo é de 1.064.595 veículos. E Departamento de relações Públicas para a América latina, nenhum título oficial foi registrado no Guinness World Records. Mais uma bravata.

Mas eu pergunto, o que é ser de direita ou de esquerda para essa gente? O que é ser do mal ou do bem? Temos muita diferença, quer seja do ponto de vista econômico e social, quer dos costumes. São diferenças também ideológicas. Mas quem pode ser contra a vacinação em massa em um País que tem o maior Plano Nacional de Imunização? Quem é contra a políticas públicas que permitam dignidade à vida, que estimulem a geração de empregos e distribuição de renda de modo que todas as pessoas que têm um coração batendo no peito possam comer?

                O que o motoqueiro da tal passeata estava defendendo? A vida?

                Eu quero vacina, emprego e dignidade para o nosso povo. Abaixo aos interesses mesquinhos de grupos, de um lado e de outro, que aprofundam uma polarização de opinião que não interessa a quem está desempregado, sem dinheiro para o aluguel e com fome. Vamos lutar pela vida construindo um projeto de desenvolvimento social em uma nação pródiga em riquezas naturais. Não somo pobres por destino, mas por projeto de uma minoria que, secularmente, sangra nosso chão e dele retira sua riqueza. É possível fazer diferente. Esse beco tem saída.

Marcio Aurelio Soares


Vamos passear?

 


Vamos passear?

 

            Atualmente com as restrições para aglomeração temos que pensar duas vezes aonde ir. De preferência em lugares abertos, arejados, de modo que evitemos as aglomerações. Já vivemos momentos piores. Há um ano, quando não tínhamos ainda muito conhecimento científico sobre o Sars-Cov 2 e a Europa nos indicava um futuro dramático, conseguimos manter uma taxa de isolamento de 60%, que deveria ter sido maior em face à necessidade de bloquearmos a transmissão viral. Sem uma liderança nacional forte que estabelecesse medidas efetivas para oferecermos vacinação em massa e sustento emergencial para desempregados e desvalidos – um terço de nossa população que vive abaixo da miséria – o governo federal insistiu em uma conduta medicamentosa substitutiva à vacina e quase estamos perdendo o fio da história. Perdemos muitos de nossos amigos e entes queridos e essa conta ainda vai ser paga. Não sei a CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito – terá força política para concluir por culpados. O fato é que a história é inexorável. Basta saber quem vai contá-la, as vítimas ou seu predadores.

            Por todo esse tempo, ouvimos falar em “serviços essenciais” que poderiam manter-se em atividade. Compreensível e evidente. Incluindo aí as farmácias, desde que respeitando regras específicas como manter álcool em gel à disposição e permitir não mais que 40% da ocupação de suas lojas.

Mas como temos em farmácias, não? Ou seriam drogarias? Parece que essas denominações – farmácia e drogaria - significam a mesma coisa, mas não é bem assim. Segundo o IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – “as drogarias são estabelecimentos de dispensação e comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos em suas embalagens originais”. Já as “farmácias, são estabelecimentos de manipulação de fórmulas magistrais e oficiais, de comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, compreendendo o de dispensação e o atendimento privativo de unidade hospitalar”. Na prática, o que costumamos chamar de farmácia, são mesmo drogarias, pois não manipulam medicamentos, e vedem uma gama de produtos e estão mais próximas aos serviços prestados por uma loja de conveniência. Perfumaria, material de higiene, barbeadores, fraldas. As encontramos em quase todas as esquinas da cidade e estão sempre lotadas. Estive numa dessas esses dias. Apesar das restrições, parecia uma feira. As pessoas já se conheciam, já eram habitués da loja. Cada qual conhecia as prateleiras de ponta a ponta e, munidas de seus cestos – como nos supermercados – se serviam de shampoos, cremes, desodorantes, vitaminas, analgésicos. Eu via seus olhos brilhando.

Dizem que mais que drogarias, só mesmo lojas de colchão. Somos 425 mil residentes na cidade. Sabendo que os colchões têm 5 anos de garantia, teremos uma potencial venda de 17.000 colchões por ano ou 1417 colchões por mês. Mesmo que uma boa parte de nossa população não tenha acesso à compra de colchões novos, “os bonecos birutas” teimam em tremular à porta das lojas por todos os bairros.

            São tempos de restrições sociais e econômicas. Cabe ao Estado garantir acesso à medicação básica para toda a sociedade. Mas, para uns tantos, os passeios preferidos continuam sendo ir às compras, mesmo que seja de analgésicos, vitaminas e colchões. Prefiro andar de bicicleta na praia, faz bem para a mente e para o corpo. O sol transforma o colesterol na pele em vitamina D e eu ainda faço economia.

 

Marcio Aurelio

 

Traidor dos Brasileiros



Traidor dos Brasileiros

            O atual presidente da república recebeu quase 58 milhões de votos. Elegeu-se presidente com um discurso moralista, anticorrupção e prometendo acabar com a violência urbana. À época, a imprensa canalizava toda a indignação popular com a carestia e o desemprego sobre os ombros do partido político que governou por 14 anos e cujos militantes  foram apelidados de PTralha. E, mais que isso, bastava não ser apoiador do candidato da extrema-direita que era o suficiente para ser equiparado a um ladrão, batedor de carteiras. A sociedade se polarizou entre os corruptos e os combatentes da corrupção. Criou-se um estigma tão grande que boa parte  das vozes de oposição se calaram. Acuados, líderes políticos e empresários foram presos e linchados moralmente em praça pública. Sua militância apequenou-se. O embate se limitou ao campo jurídico. Por seis longos anos, vivemos um extensa novela com capítulos diários transmitidos pelos telejornais. Um verdadeiro massacre. Merecido? Deixo a pergunta.

            Ao contrário do senso comum que tenta nos convencer de que o brasileiro é indolente e não muto afeto às honestidades, somos um povo trabalhador. Mesmo diante de injustiças históricas que cavam um grande fosso social e econômico, o brasileiro busca o trabalho como caminho para a sua sobrevivência e abomina os maus feitos, encarnados na classe política, exatamente por aqueles que a domina e pretendem com isso afastar a população do centro do poder.

            Venderam gato por lebre. Ou você votaria em um político que tenha pago R$ 56.160,00 de gasolina num só dia? E que tal um candidato cujos funcionários tenham sacado R$ 551 mil em dinheiro vivo de seus próprios salários? E o Queiroz? Por onde anda o Queiroz? Ah, sim. Acharam o Queiroz! Mas e o dinheiro que ele depositou na conta da 1ª Dama? Foram 89 mil reais! Tá somando? Isso é só o varejo.

            Você não esperava por isso. Tenho certeza. Mas isso aconteceu porque não prestamos muita atenção no que o deputado falava e fazia durante seus 28 anos de Congresso. Preferimos achar que era só bravata, fanfarronice; mesmo quando na década de 1990 foi a TV defender “uma guerra civil com o assassinato de pelo menos 30 mil pessoas”, além de dizer que sonegava impostos e aconselhava a todos fazerem o mesmo. Lembram-se disso? A imprensa e as redes sociais estão cheias de registros desses tipos de depoimento. Está vivo em minha memória o dia que ele falou que só não estuprava uma mulher porque ela era feia, ou o dia que brindou a um famoso torturador. Achávamos que ele era louco. Hoje temos certeza que temos um Presidente louco.

            Não se sintam culpados. Ele é traidor. Você não! Saberemos ter um voto de equilíbrio.

 

07 de junho de 2021

Marcio Aurelio Soares

 

Não é sopa


Não é sopa

 

            Tenho a impressão de que os mais jovens não vão entender este título. Uma expressão que permeia toda a minha vida desde a infância. Era um costume antigo dizer que a situação não estava “sopa” quando não tínhamos boas notícias ou ocorria algo indesejado. Ao contrário, quando a “sopa cai no mel”, aí sim, significa que o “céu está para brigadeiro”, tudo às mil maravilhas; uma situação extremamente favorável.  

            Sopa nos remete a cuidado, carinho, atenção, recuperação. Para todos os males, a famosa sopinha surge como um santo remédio. Nutritiva, feita de legumes, é de fácil digestão; um prato típico da vovó, especialmente, em lugares mais frios. Não existe carinho melhor que uma sopinha bem quentinha, acompanhada de torradas. É tão bom que dá até para “ver” seu cheirinho típico saindo com a fumaça. Se você tivesse ido ao dentista, à noite estaria tomando sopa. Se tivesse saído de uma cirurgia, pode contar, tomaria sopa por, pelo menos, uma semana.

            Os costumes vão mudando, e as expressões, juntos. O que era “da pontinha da orelha”, hoje pode ser considerado “daora”. Mas, independentemente das gírias temporais, continuamos com dificuldade de tirar o “pé do atoleiro”, a situação não está mesmo “sopa” para ninguém.

            Não abrimos mais os jornais, acessamos às notícias pelo celular, e o que vemos é só lacração, cancelamentos e muitas vezes, as malditas fake news. Estamos entrando numa terceira onda, ou nos mantemos em maré cheia da pandemia? As notícias nem sempre vêm para nos ajudar; é preciso muita atenção para entender os gráficos, as curvas, taxas de mortalidade e letalidade, e saber diferenciá-las. Muitos especialistas são entrevistados. Infectologistas, epidemiologistas, imunologistas, sanitaristas, passaram a frequentar os telejornais e as redes sociais diariamente. E isso é muito bom. Temos mais acesso às informações, o que estimula o debate nas rodas de conversa. O problema surge quando, sem formação técnica necessária, a população vira especialista. Apesar de estarmos há mais de um ano em situação de pandemia e vivendo sério de risco de adoecermos, temos que entender que a “sopa de letrinhas e números”, nos oferecida no atacado, não é nada fácil de ser degustada e digerida. Fazer sopa é coisa de vó, exige dedicação, experiência, cuidado e muito amor. Extrair números e concluir por condutas clínicas e sanitárias é tarefa para os médicos.

            Em tempos de crise, “cautela e canja de galinha não faz mal a ninguém”. E o cardápio de hoje é vacina. Como dizia minha mãe, goste ou não, acho bom você tomar, “com casca e tudo”. É reconfortante porque protege a você, sua família e toda a comunidade. Aí sim, será “sopa no mel”. E olha que a vacina não está dando sopa.

 

02 JUNHO DE 2021

 

MARCIO AURELIO SOARES

“Old MacDonald had a farm, E-I-E-I-O”


“Old MacDonald had a farm, E-I-E-I-O”

 

            Infelizmente nem todos, meninas e meninos, tiveram a oportunidade de estudar inglês. Uma das primeiras musiquinhas utilizadas nesse processo de aprendizagem, foi essa que eu uso como título desta crônica. Ela diz que o “velho Mac Donald tinha uma fazenda”. Na fazenda tinha vaca, porco, galinha, pato, cachorro, ovelha. As crianças cantavam e brincavam alegres, tudo acompanhado por imagens projetadas na parede mostrando um senhor vestido com macacão de brim azul – jeans – bochechas rosadas, feliz da vida e muito próspero. E hoje, para minha surpresa – nem tanto – descobri que sua primeira versão foi gravada por Elvis Presley em 1967, em ritmo de “twist”!

            O “twist” é uma dança inspirada no rock’n roll dos anos 1950-1960, que traduzindo para o português, quer dizer “torção”, pois exige muito balanço dos quadris e das pernas dos dançarinos. E de onde poderia ter surgido esse ritmo musical? Da África, vinda do Congo, trazida por escravos, no século XIX e popularizada por Chubby Checker nos Estados Unidos.

            O velho Mac Donald, o “twist”, e tantos outros ritmos musicais, e a África, fazem parte da formação cultural dos Estados Unidos. Assim como nós, eles esqueceram da África e, desde a década de 1950 exportam o seu “American Way of life” – modo de vida americano -; a felicidade pelo consumo, na maioria das vezes de supérfluos, referência de bem-estar para os demais países capitalistas ocidentais, uma verdadeira vitrine de uma sociedade perfeita, de fazendeiros prósperos e bem nutridos, felizes por seu gado e seus porcos e de uma indústria pujante que permitia emprego pleno e conforto para os seus.

            No Brasil do “velho Mac Donald”, e de seu filho McDonald’s da lanchonete, imitávamos(?) tudo. O estilo de vida “americano” foi incorporado pelo brasileiro. De chiclete a carros, passando pela Coca-Cola, nossa classe média, comprava(?) tudo.  As interrogações entre parênteses não significam dúvidas, mas um questionamento irônico se o tempo do verbo está correto, pois continuamos a imitar e a comprar no presente.

            Os anos 1930, até o início dos anos 1960, foram marcados pela construção do Estado brasileiro. A industrialização do País passou pela criação da siderurgia, da garantia de que o Petróleo era nosso, da Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT -, do ensino técnico, das comunicações, com estímulo a produção cinematográfica, e à chegada do rádio e da TV, e inúmeras outras iniciativas que garantiam um projeto de desenvolvimento nacional sólido. Estávamos no caminho. Mas o “old Mac Donald” venceu. Os tempos são de desconstrução nacional. A palavra de ordem é vender as propriedades nacionais. Quantos aos “americanos”, seu estilo de vida fez água. Apesar de serem o país mais rico do mundo, com sua economia representando quase 25% da produção global de bens e serviços, essa riqueza não se traduz, para a sua população, em uma qualidade de vida proporcional. 17,8% dela está abaixo do nível de pobreza, é o 28º país em expectativa de vida, abaixo do Chile e de Portugal, 5º país com maior mortalidade infantil e o 10º com maior desigualdade de renda entre os países desenvolvidos. A musiquinha das aulas de inglês é ótima para impor sua cultura e seu projeto de nação. Com ela, vieram o consumismo, o bem viver supérfluo, a destruição de parte de nossos recursos naturais, de nosso projeto nacional e a tentativa de desfiguração de nossa cultura. Hoje, o governo americano tenta recuperar-se repetindo o modelo econômico do “New Deal” da década de 1930 ao injetar trilhões de dólares em programas de transferência de renda e criação de empregos. E, de novo, o governo brasileiro faz o contrário. Dá a eles o que é nosso, desindustrializando o país, não vacinando nosso povo, não criando empregos ou transferindo renda e cultivando o caos. O Jeca Tatu, de Monteiro Lobato continua entre nós, desvalido e abandonado à própria sorte, enquanto alguns poucos continuam indo para Miami fazer compras.

            Mas as ruas começam a entoar outro canto. Que a nossa diversidade musical prevaleça, que nossos recursos naturais continuem vivos, e que nossa juventude cante mais sambas, frevos e maracatus. Para a construção de um estilo de vida brasileiro, estamos construindo um projeto de desenvolvimento que passa por nossa reindustrialização, forte investimento em educação de qualidade e crescimento econômico com sustentação social.

É chegada a hora de cantarmos mais alto.

 

23 de maio de 2021.

 

Marcio Aurelio Soares