Hoje é meu dia

            Por volta de nove anos de idade, a professora Marli, chamada antes de “dona” – e não tia, como hoje em dia - solicitou que escrevêssemos uma redação sobre o que desejaríamos ser quando crescêssemos. Aliás, um tema não tão recorrente nos dias de hoje, mas que era muito comum à época. Bastava mãe ou pai apresentar a criança para um amigo, e lá vinha a pergunta: o que você vai ser quando crescer?. Uns logo respondiam, com orgulho, que seriam bombeiros, outros seriam policiais. Enfim...

            A pergunta se torna irrelevante, pois quero escrever é sobre minha resposta. Ao ser questionado na infância, escrevi: quando crescer, quero ser médico! Minha mãe, Dona Rita, de tão orgulhosa do filho, guardou a redação por longos e longos tempos. Sempre que a ocasião permitia, lá vinha com o tal papel amarelado. Fato este, imediatamente lembrado quando conferimos o resultado do vestibular. Confesso, mantive este orgulho, da carta e de minha tão tenra decisão, por muitos e muitos anos também.

            Hoje, após décadas de ter sido submetido à marcante tarefa escolar, estou aqui, escrevendo uma redação sobre o que eu quis ser quando crescesse e o que eu fiz com isso. Foram mais de 200 mil horas de estudo! Sim, após 28 anos de profissão, somados aos tantos anos de faculdade e especializações, cheguei a este número curioso.

Agora me pergunto: valeu a pena? Lógico que valeu, mesmo que, para isso, tivesse que usar a famosa do poeta Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”.

Com a maturidade se consolidando e a velhice batendo à porta, nos tornamos mais reflexivos e exigentes. Por isso, talvez, pela primeira vez faço um balanço de minha profissão não tão positivo como antes. Hoje, os médicos usam jaleco branco e nariz de palhaço, protestando contra os planos de saúde. Mercantilizaram o meu sonho!

Naquela redação de menino, não escrevi como queria ganhar dinheiro. Eu jurei, naquele pequeno texto, por Apolo e por Asclépio, como quis Hipócrates, a “curar algumas vezes, aliviar o sofrimento sempre que possível e a confortar (os doentes) sempre”.

Se eu consegui? Em boa medida, acredito que sim. A crescente demanda por assistência médica acaba por banalizar e vulgarizar o serviço, na medida em que faz da saúde um bem a ser comprado, e não conquistado. A “indústria da doença”, com fins de obter o máximo de lucro possível, faz com que pessoas sintam-se seguras ao adquirirem um plano de saúde. Passam a vender ilusão de saúde comprada e, desta forma, estimulam o consumo de exames e consultas indiscriminadamente, mesmo que indiretamente. Assim, a lógica passou a ser de mercado, de relação entre oferta e procura, como qualquer comerciante, que diminui o preço do produto para ver aumentada sua clientela.

            Não, aos nove anos, não foi essa a minha escolha. Agora, depois de 50 anos, me vejo, assim como meus colegas, tendo que escrever uma nova redação: a de como sobreviver diante de minha consciência boba e ingênua.

 Viva Hipócrates e seus deuses Esculápio, Apolo, Panaceya e Hygea! Chega de nariz de palhaço!

            Dona Marli, Dona Rita, quero continuar sonhando!



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